DE PROFESSOR A POLICIAL

DE PROFESSOR A POLICIAL

George L. Kirkham, professor assistente da Escola de Criminologia da Universidade da Flórida

Este artigo originalmente publicado no boletim do FBI e condensado agora por seleções e de muita importância para que aqueles que procuram explicações para a ação policial no cotidiano das grandes cidades, possam compreender por que o policial anda armado e possam ver “os milhares de policiais, homens e mulheres, lutando e resolvendo problemas difíceis para preservar nossa sociedade e aquilo que nos é mais caro”.
Ao determinar a reprodução deste artigo, recomenda a todos os professores que o explore na instrução com policiais civis, bem como estimule debates com autoridades locais, especialmente aqueles que, como o professor, disponham do tempo que queiram para tomar decisões difíceis. Talvez, então, possam compreender o policial que é “forçado a fazer escolhas críticas em questão de segundos (prender ou não prender, perseguir ou não perseguir), sempre com a incômoda certeza de que outros, aqueles que tinham tempo para analisar e pensar, estariam prontos para julgar e condenar aquilo que fizera ou aquilo que não tinha feito”. Este artigo foi apresentado para a Primeira turma de Delegados de Polícia do Estado de Mato Grosso do Sul em 1984.

 

Como professor de Criminologia, tive  problemasdurante algum tempo, devido ao fato de que, seguindo amaioria daqueles que escrevem livros sobre assuntospoliciais, eu nunca havia sido policial. Contudo, algunselementos da comunidade acadêmica norte-americana, talcomo eu, agiram muitas vezes precipitadamente ao apontarerros da nossa polícia. Dos incidentes que lemos nosjornais, formamos imagens estereotipadas, como as dopolicial violento, racista, venal ou incorreto. O que nãovemos são os milhares de dedicados agentes da polícia,homens e mulheres, lutando e resolvendo problemasdifíceis para preservar nossa sociedade e tudo que nos écaro.

Muitos dos meus alunos tinham sido policiais, eeles várias vezes opunham às minhas críticas o argumentode que uma pessoa só poderia compreender o que umagente da polícia tem de suportar quando se sentisse napele de um policial. Por fim, me decidi a aceitar o desafio. Entraria para a polícia e, assim, iria testar a exatidãodaquilo que vinha ensinando. Um dos meus alunos (umjovem agente que gozava licença para freqüentar o curso, pertencente à Delegacia de Polícia de Jacksonville, Flórida)me incitou a entrar em contato com o Xerife Dale Carson e o Vice-Xerife D. K. Brown e explicar-lhes minha pretensão.

Lutando por um distintivo

Jacksonville parecia-me o lugar ideal. Um portomarítimo e um centro industrial em crescimento acelerado.Ali ocorriam, também, manifestações dos maioresproblemas sociais que afligem nossos tempos: crime, delinqüência, conflitos raciais, miséria e doenças mentais.Tinha, igualmente, a habitual favela e o bairro reservadoaos negros. Sua força policial, composta por 800elementos, era tida como uma das mais evoluídas dosEstados Unidos.

Esclareci ao Xerife Carson e ao Vice-Xerife Brown de que pretendia um lugar não como observador, mascomo patrulheiro uniformizado, trabalhando em expedienteintegral durante um período de quatro a seis meses. Elesconcordaram, mas impuseram também a condição de queeu deveria, primeiro, preencher os mesmos requisitos quequalquer outro candidato a policial, uma investigaçãocompleta do caráter, exame físico, e os mesmos programasde treinamento. Haveria outra condição com a qualconcordei prontamente em nome da moral. Todos os outrosagentes deviam saber quem eu era e o que estava fazendoali. Fora disso, em nada eu me distinguiria de qualqueragente, desde o meu revólver Smith and Wesson .38 até odistintivo e o uniforme.

O maior obstáculo foram as 280 horas detreinamento estabelecidas por lei. Durante quatro meses (quatro horas por noite e cinco noites por semana), depoisdas tarefas de ensino teórico, eu aprendia como utilizaruma arma, como aproximar-me de um edifício naescuridão, como interrogar suspeitos, investigar acidentesde trânsito e recolher impressões digitais. Por vezes, ànoite, quando regressava a casa depois de horas detreinamento de luta para defesa pessoal, com os músculoscansados, pensava que estava precisando era de um examede sanidade mental por ter-me metido naquilo. Finalmente,veio a graduação e, com ela, o que viria a ser a maiscompensadora experiência da minha vida.

Patrulhando a rua

Ao escrever este artigo, já completei mais de 100rondas como agente iniciado, e tantas coisas aconteceram no espaço de seis meses que jamais voltarei a ser a mesmapessoa. Nunca mais esquecerei também o primeiro dia emque montei guarda defronte à porta da Delegacia de Jacksonville. Sentia-me, ao mesmo tempo, estúpido eorgulhoso no meu novo uniforme azul e com a cartucheirade couro.

A primeira experiência daquilo que eu chamo deminhas “lições de rua” aconteceu logo de imediato. Commeu colega de patrulha, fui destacado para um bar, ondehavia distúrbios, no centro da zona comercial da cidade. Encontramos um bêbado robusto e turbulento que, aosgritos, se recusava a sair. Tendo adquirido certaexperiência em admoestação correcional, apressei-me atomar conta do caso. “Desculpe, amigo”, disse eusorridente, “não quer dar uma chegadinha aqui fora parabater um papo comigo?” O homem me encarou incrédulo,com os olhos vermelhos. Cambaleou e me deu umempurrão no ombro. Antes que eu tivesse tempo de merecuperar, chocou-se de novo comigo e, desta vez, fazendosaltar da dragona a corrente que prendia meu apito. Apósbreve escaramuça, conseguimos levá-lo para aradiopatrulha.

Como professor universitário, eu estava habituado a ser tratado com respeito e deferência e, de certo modo, presumia que isso iria continuar assim em minhas novasfunções. Estava porém, aprendendo que meu distintivo euniforme, longe de me protegerem do desrespeito, muitasvezes atuavam como um imã atraindo indivíduos queodiavam o que eu representava. Confuso, olhei para meucolega, que apenas sorriu.

Teoria e prática

Nos dias e semanas seguintes, eu iria aprendermais coisas. Como professor, sempre procurava transmitiraos meus alunos a idéia de que era errado exagerar oexercício da autoridade, tomar decisões por outras pessoasou nos basearmos em ordens e mandatos para executarqualquer tarefa. Como agente de polícia, porém, fui muitasvezes forçado a fazer exatamente isso. Encontrei indivíduosque confundiam gentileza com fraqueza – o que se tornavaum convite à violência. Também encontrei homens,mulheres e crianças que, com medo ou em situações dedesespero, procuravam auxílio e conselhos no homemuniformizado.

Cheguei à conclusão de que existe um abismoentre a forma como eu, sentado calmamente no meugabinete com ar condicionado, conversava com o ladrão ouassaltante à mão armada, e a maneira pela qual ospatrulheiros lidam com esses homens – quando eles se mostram violentos, histéricos ou desesperados. Essesagressores, que anteriormente me pareciam tão inocentes,inofensivos e arrependidos depois do crime cometido, comoagente de polícia, eu os encarava pela primeira vez comouma ameaça à minha segurança pessoal e a da nossaprópria sociedade.

Aprendendo com o medo

Tal como o crime, o medo deixou de ser umconceito abstrato para mim, e se tornou algo bem real, quepor várias vezes senti: era a estranha impressão em meuestômago, que experimentava ao me aproximar de umaloja onde o sinal de alarme fora acionado; era umasensação de boca seca quando, com as lâmpadas azuis acesas e a sirena do carro ligada, corríamos para atender a uma perigosa chamada onde poderia haver tiroteio.

Recordo especialmente uma dramática lição nocapítulo do medo. Num sábado à noite, patrulhava commeu colega uma zona de bares mal freqüentados e casasde bilhares, quando vimos um jovem estacionar o carro emfila dupla. Dirigimo-nos para o local, e eu pedi quearrumasse devidamente o automóvel, ou então que fosseembora, ao que ele respondeu inopinadamente cominsultos. Ao sairmos da radiopatrulha e nos aproximarmos do homem, a multidão exaltada começou a nos rodear. Elecontinuava a nos insultar, recusando-se a retirar o carro.Então, tivemos que prendê-lo. Quando o trouxemos para aviatura da polícia, a turba nos cercou completamente. Naconfusão que se seguiu, uma mulher histérica abriu meucoldre e tentou sacar meu revólver.

De súbito, eu estava lutando para salvar minhavida. Recordo a sensação de verdadeiro terror que senti aopremir o botão do armeiro na radiopatrulha onde se encontravam nossas armas longas. Até então, eu sempretinha defendido a opinião de que não devia ser permitidoaos policiais o uso de armas longas, pelo aspecto“agressivo” que denotavam, mas as circunstâncias daquelemomento fizeram mudar meu ponto de vista, porque agoraera minha vida que estava em risco.  Senti certo amargorquando, logo na noite seguinte, voltei a ver, já emliberdade, o indivíduo que tinha provocado aquele quasemotim – e mais amargurado fiquei quando ele foi julgado e, confessando-se culpado, condenaram-no a uma pena levepor “violação da ordem”.

Vítimas silenciosas

Dentre todas as trágicas vítimas que vi duranteseis meses, uma se destaca. No centro da cidade, numedifício de apartamentos, vivia um homem idoso que tinhaum cão. Era motorista de ônibus aposentado. Encontrava-os quase sempre na mesma esquina, quando me dirigiapara o serviço, e por vezes me acompanhavam durantealguns quarteirões.

Certa noite, fomos chamados por causa de umtiroteio numa rua perto do edifício. Quando chegamos, ovelho estava estendido de costas no meio de uma grandepoça de sangue. Fora atingido no peito por uma bala e, emagonia, me sussurrou que três adolescentes o tinham interceptado e lhe exigiram dinheiro. Quando viram que tinhatão pouco, dispararam e o abandonaram na rua.

Em breve, comecei a sentir os efeitos daquelatensão diária a que estava sujeito. Fiquei doente e cansadode ser ofendido e atacado por criminosos que depois seriamquase sempre julgados por juizes benevolentes e porjurados dispostos a conceder aos delinqüentes “novaoportunidade de se reintegrarem ao convívio da sociedade”.Como professor de Criminologia, eu dispunha do tempo quequeria para tomar decisões difíceis. Como policial, noentanto, era forçado a fazer escolhas críticas em questãode segundos (prender ou não prender, perseguir ou nãoperseguir), sempre com a incômoda certeza de que outros,aqueles que tinham tempo para analisar e pensar, estariamprontos para julgar e condenar aquilo que eu fizera ouaquilo que não havia feito.

Como policial, muitas vezes fui forçado a resolverproblemas humanos incomparavelmente mais difíceis doque aqueles que enfrentara para solucionar assuntoscorrecionais ou de sanidade mental: rixas familiares,neuroses, reações coletivas perigosas de grandesmultidões, criminosos. Até então, estivera afastado de todaespécie de miséria humana que faz parte do dia-a-dia davida de um policial

Bondade em uniforme

Freqüentemente, fiquei espantado com ossentimentos de humanidade e compaixão que pareciamcaracterizar muitos dos meus colegas agentes da polícia.Conceitos que eu considerava estereotipados eram, muitasvezes, desmentidos por atos de bondade: um jovem policialfazendo respiração boca-a-boca num imundo mendigo, umveterano grisalho levando sacos de doces para as criançasdos guetos, um agente oferecendo a uma famíliaabandonada dinheiro que provavelmente não voltaria areaver.

Em conseqüência de tudo isso, cheguei a humilhante conclusão de que tinha uma capacidadebastante limitada para suportar toda a tensão a que estavasujeito. Recordo em particular certa noite em que o longo edifícil turno terminara com uma perseguição a um carroroubado. Quando largamos o serviço, eu me sentia cansadoe nervoso. Com meu colega, estava me dirigindo para umrestaurante a fim de comer qualquer coisa, quandoouvimos o som de vidros que se partiam, proveniente de uma igreja próxima, e vimos dois adolescentes cabeludosfugindo do local. Nós os alcançamos e pedi a um deles quese identificasse. Ele me olhou com desprezo, xingou-me e virou as costas com intenção de se afastar. Não me lembro do que senti. Só sei que o agarrei pela camisa, colei seunariz bem no meu e rosnei: “Estou falando com você, seucretino!”

Então meu colega me tocou no ombro, e ouvi suaconfortante voz me chamando à razão: “Calma,companheiro!” Larguei o adolescente e fiquei em silênciodurante alguns segundos. Depois me recordei de uma dasminhas lições, na qual dissera aos alunos: “O sujeito quenão é capaz de manter completo domínio sobre suasemoções, em todas as circunstâncias, não serve parapolicial”.

Desafio complicado. Muitas vezes perguntara amim próprio: “Por que uma pessoa quer ser policial?”Ninguém está interessado em dar conselhos a uma famíliacom problemas às três da madrugada de um domingo, ouem entrar às escuras num edifício que foi assaltado, ou empresenciar, dia após dia, a pobreza, os desequilíbriosmentais, as tragédias humanas. O que faz um policialsuportar o desrespeito, as restrições legais, as longas horasde serviço com baixo salário, o risco de ser assassinado oumutilado?

A única resposta que posso dar é baseada apenasna minha curta experiência como policial. Todas as noiteseu voltava para casa com um sentimento de satisfação e deter contribuído com algo para a sociedade – coisa quenenhuma outra tarefa me havia dado até então.

Todo agente de polícia deve compreender que suaaptidão para fazer cumprir a lei, com a autoridade que elerepresenta, é a única “ponte” entre a civilização e osubmundo dos fora-da-lei. De certo modo, essa convicçãofaz com que todo o resto (o desrespeito, o perigo, os aborrecimentos) mereça que se façam quaisquer sacrifícios.

 

Fonte: Este artigo foi publicado em Março de 1978, na página 84, da revista Seleções Reader’s Digest e apresentado na Aula Inaugural do Curso de Formação parao Cargo de Delegado de Polícia, da 46ª Turma da ACADEPOL/MS pelo Dr. Wagner Silva, Delegado de Polícia,Classe Especial, Diretor-Geral da Polícia Civil, em 23 deMaio de 2006.

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